Sobre o LAPA

O LAPA (Laboratório de Estudos e Práticas da Autogestão), muito modestamente, se propõe como um pequeno círculo de amigo(a)s e camaradas que possuem vínculos, afinidades, afetos e interesses em comum em torno do tema da auto-organização popular, talvez, como uma via possível para a emancipação de todos os subalternos e trabalhadores. Assim, é uma aposta simultânea na amizade e na revolução.

Por hora, o LAPA não se constitui como um coletivo, uma entidade ou uma organização, ainda que em potecial possa vir a ser isso ou outras coisas que nem sequer imaginamos. Como círculo, temos vínculos que nos unem para além do espaço que nos separa. Os estudos e ações que compartilharemos como círculo pode inclusive dar fôlego e alento para a formação e/ou consolidação de iniciativas coletivas e/ou individuais, nos mais distintos lugares onde nos situamos como vizinhos, estudantes, trabalhadores, etc.

A idéia de Laboratório, até agora sugerida, nasce como uma metáfora que se orienta pela dimensão experimentalista que carrega todo laboratório – e isso nos interessa particularmente, experimentar idéias e práticas, aprender e se apropriar do melhor dos processos políticos e sociais dos mais diversos movimentos de liberação que se levantaram contra todas as ordens e esquemas de dominação (inclusive os de esquerda). E mais: nosso laboratório é de bolso, se materializa e desmaterializa segundo determinadas condições ambientais e temperamentais, e talvez seremos muito mais tomados e possuídos pelas experiências do que a dissecaremos e a controlaremos, ao contrário do que ocorre com os homens-de-guarda-pó.

E se nos lançaremos a estudar e praticar a autogestão é porque ela todavia nos parece ser a melhor forma encontrada pelos dominados até hoje para que a terra, os meios de produção, o trabalho e a política (com ou sem o Estado) não se converta em monopólio e privilégio de uns poucos, e logo, instrumento de dominação, opressão e submissão de classe, casta, grupos ou camarilhas. E para isso é importante que nos alimentemos das teorias e narrativas que fundaram a autogestão como um princípio político, e que transcende, aliás, muitos projetos políticos ou ideologias (como o anarquismo e o comunismo); e ao mesmo tempo buscar compreender os caminhos e as vicissitudes das experiências de autogestão que tiveram curso, especialmente, na história moderna.



sábado, 16 de julho de 2011

O FOGO E A PALAVRA: A UTOPIA ZAPATISTA EM CENA




“Pero nada pueden bombas, donde sobra corazón”
(Ay Carmela! – Canção popularizada durante a Guerra Civil Espanhola, 1936-1939)




Não é muito fácil fugir da imagem generalizada, dentro e fora dos círculos de esquerda, de que os anos 1990 passaram como uma nuvem cinza acobertando nossas cabeças com certo sentimento de derrota. Os processos sociais e políticos que culminaram com a dissolução da URSS e a queda do muro de Berlim apontavam para um horizonte de crise para todo projeto de emancipação social que tivesse como meta a transformação do mundo capitalista.

A esquerda e os movimentos sociais informados pelo marxismo, ou pelo menos a ortodoxia marxista, sofrera um poderoso golpe. E junto a eles, graças ao esforço sistemático dos ideólogos da economia de mercado e das agências de comunicação cartelizadas em desacreditar as “utopias”, atiravam a criança junto com a água suja: sindicatos, movimentos de trabalhadores, exploração, mais-valia, luta de classes, em suma, uma gramática que informava uma dada realidade sócio-histórica fora desacreditada juntamente com toda luta política e social que se erigisse sob ela. Isso explica em parte o sucesso da onda liberalizante furiosa dos anos 90. Pelo menos, o clima fora criado.

Porém, é no mínino estupidificante crer que, como gostariam os arautos da assim chamada “nova ordem econômica mundial”, a crise do socialismo soviético, ou da ortodoxia marxista-leninista, implicasse necessariamente em uma crise de todas as formas de lutas e aspirações de caráter anticapitalista. Entre a miopia ideológica e a ingenuidade estrategicamente insinuada nos deparamos invariavelmente com os inesperados e tortuosos buracos da história, a “velha toupeira”, para aludir a uma metáfora marxiana muito cara à Rosa Luxemburgo. E assim presenciamos, em pleno 1994 neoliberal, o aparecimento público da guerrilha zapatista no México. E ao longo dos anos noventa, sinais de pelo menos outros dez grupos guerrilheiros no país.

Em 1991 o México realizou uma reforma da sua constituição, especialmente em seu artigo 27, que trata da questão fundiária, tendo em vista criar condições jurídicas e institucionais para que os camponeses pudessem vender ou alienar suas terras. Tudo isso no clima de celebração do ingresso do país no Tratado de Livre Comércio da América do Norte (TLCAN), celebrado juntamente com os EUA e o Canadá. Quem em algum momento teve a oportunidade de ler sobre a história das lutas campesinas no México sabe que naquele país ocorreu uma revolução no princípio do século XX que animou um dos processos mais radicais de reforma agrária do continente americano. Assim, na esteira dessa “tradição” revolucionária e de suas heranças agraristas, em 1º de janeiro de 1994, dia em que formalmente o México passara a fazer parte do TLCAN, dezenas de milhares de camponeses e indígenas organizados em torno do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) deflagraram guerra ao governo federal, levantando-se no estado de Chiapas, sul do país.

O EZLN se constituiu como um grupo guerrilheiro em 1983, alimentado pelo marxismo-leninismo e pelo maoísmo, se organizando entre populações indígenas e camponesas em torno do objetivo da revolução socialista no México. O levante armado de 1994 durou apenas alguns dias. Em pouco tempo a sociedade civil mexicana manifestou-se contra a guerra e pressionou o governo a dialogar com o grupo insurrecto. Assim começava a longa jornada do grupo guerrilheiro, que em pouco tempo se converteu em uma das forças políticas radicais mais criativas e visíveis do mundo. O EZLN revelou-se habilidoso em utilizar-se de todos os recursos disponíveis para seguir a sua luta em variadas frentes, especialmente o combate comunicacional através das mídias emergentes, como a internet.

O EZLN, assim, abdica da idéia de tomar o poder realizando um assalto ao aparato de Estado, e reconfigura-se a partir do princípio da produção e organização da autonomia popular indígena, e assim, construir “um mundo onde caibam outros mundos”. A resistência assume a dianteira frente à ofensiva. O exército zapatista se converte em grupo armado de autodefesa, protegendo as comunidades indígenas e campesinas chiapanecas. A dimensão étnica ganha novos contornos e auxilia no reagrupamento das estratégias de luta dos zapatistas.

A condução da “ciberguerrilha”, e a boa interlocução com a sociedade civil nacional e internacional ajudaram o EZLN a negociar com o governo em 1995 uma lei de anistia, que conferiu aos zapatistas o estatuto de cidadãos rebeldes, ao lugar de subversivos insurgentes, ao mesmo tempo que garantia um espaço de diálogo com membros do governo para negociar as condições da paz em Chiapas, como os conhecidos Diálogos de San Cristobal e os Diálogos de San Andrés. Aqui os zapatistas puderam fazer uso da palavra e apresentar formalmente ao governo mexicano e a sociedade civil suas principais demandas: a modificação das alterações feitas no artigo 27 da constituição, criação de mecanismos de controle popular sobre os recursos naturais, a realização de reformas legais e constitucionais visando ampliar a participação e a representação política local e nacional dos povos indígenas, a conformando um novo federalismo, a garantia do acesso pleno dos povos indígenas aos instrumentos jurídicos do Estado, e sua utilização levando em conta as suas especificidades culturais e seus sistemas normativos internos. O cerne do problema foi que o governo, reconhecendo publicamente a justeza da causa zapatista e subescrevendo a necessidade de implementação de suas reivindicações, jamais cumpriu os acordos.

A traição por parte do governo levou os rebeldes a firmarem-se contundentemente na estratégia da resistência, agora mais legitimada ainda pelo reconhecimento estatal da causa indígena e camponesa. A luta pela autonomia se constituiu, portanto, na mais imediata tarefa do EZLN, com a transformação do espaço insurgente em território liberado. Com o levante, os rebeldes haviam tomado controle de uma parte substantiva do território chiapaneco, quase metade de sua extensão, proclamando o nascimento dos seus 38 municípios autônomos rebeldes zapatistas (os MAREZ, como passaram a ser conhecidos). E foi precisamente ali, no interior dos Marez, o laboratório de experiência zapatista do seu projeto de autonomia: a condução do autogoverno.

O autogoverno representa a mais livre e manifesta concretização das aspirações de autodeterminação procurada pelos povos indígenas chiapanecos, articulada e re-semantizada ao lado do que há de mais moderno e liberatório nos projetos republicanos de democracia radical. Em outras palavras, as vicissitudes e particularidades da luta política revolucionária no México levaram os zapatistas, mediante a necessidade de resistência, a construção das condições de possibilidade para a realização do seu projeto de emancipação de imediato, e ainda que lançando as bases para alguma movimentação muito maior e mais ousada, estão colocando a utopia a prova: nem os falanstérios de Fourier, muito menos a Comuna de Paris, chegou a cruzar o período de uma década!

É claro que as dificuldades e os obstáculos se avolumam com o tempo. Se o governo reconhece a legitimidade da causa zapatista, por um lado, por outro prossegue enviando grandes contingentes de militares para o estado de Chiapas e aprisionando arbitrariamente lideranças populares, além de armar grupos paramilitares com o intuito de minar as forças zapatistas. Assim, a chamada “guerra de baixa intensidade” está em curso em Chiapas.

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